sábado, 13 de julho de 2013

Um Mergulho na Depressão.



Sexta-Feira, dezembro, meados dos anos 80.
Ao entrar no centro de convenções senti o corpo gelar, uma sensação desagradável tomou conta de mim de forma surpreendente. Estava ali para receber o diploma de médico.  Foi um evento social com certo impacto. Pela primeira vez, desde a implantação da ditadura militar, que uma turma de medicina se formaria em uma única solenidade. Estávamos naquele momento representando para a sociedade algo considerado perigoso pelos militares, uma classe com sentimento de classe. Meu Deus! Quanta hipocrisia. A sociedade não foi informada que neste grupo de formandos, muitos arrancaram dos quadros no hospital e faculdade de medicina os avisos de estágios e cursos de fora da faculdade para evitar concorrência. Que havia aqueles que entraram exclusivamente pela política e que jamais veriam um paciente na vida de, entre aspas, médicos. Também aqueles, exceções, a bem da verdade, cujos comportamentos aéticos deveriam ter provocado suas expulsões da faculdade.
Sentia-me mal por participar daquela hipocrisia, a turma formada unida, nada tinham de união a não ser a própria formatura. As diferenças chegaram ao ponto de termos dois oradores, impostos por dois grupos conflitantes.
O último conflito, a própria roupa que usávamos. Uma turma não abria mão da Beca, outra não abria mão do terno. Depois de uma manhã inteira de discussão, a maioria da turma decidiu que seria terno cinza com uso obrigatório do colete. Avisei antecipadamente que não usaria colete, afinal Salvador era uma cidade de clima acalorado e eu não iria me sentir desconfortável por causa de roupa alguma. Quando cheguei ao salão principal do centro de convenções reservado para nossa formatura, percebi que alguns colegas que não se manifestaram na reunião final também não estavam usando coletes. Esta era a turma dos independentes.
Meu pai, que estaria muito orgulhoso neste dia, havia morrido três anos antes vítima de um AVC. Minha mãe fez questão de estar acompanhada da minha tri-ex-namorada, forçando uma reaproximação que eu não desejava. Meu olhar de reprovação disse tudo por mim ao ponto de fazer minha mãe cochichar-me no ouvido: “Comporte-se com ela”.
Sorri ao receber meu diploma, meu sorriso social, aparentemente feliz, totalmente falso. Era muita hipocrisia para uma noite apenas. Com o diploma na mão pensava apenas que tudo daquele dia em diante seria minha responsabilidade, eu teria um preceptor na residência, treinando-me, pelo menos esta era a percepção de uma residência, mas no fundo eu sabia que os erros seriam os meus erros, de mais ninguém. Como eu lidaria com os erros? Se e quando acontecesse eu teria a habilidade de repará-los em tempo? Estaria realmente preparado para ter a responsabilidade de uma vida sob as minhas mãos?
A noite foi rápida, ao que me lembro. A festa no Clube Baiano de Tênis foi restrita a poucos convidados por aluno, afinal eram muitos os formandos. Mas como meu grupo de colegas com quem saia para farras era razoável, tive muita gente para dar atenção e evitar uma conversa que seria desagradável com Carla. Felizmente, para ela, Carla se comportou como a namorada silenciosa, ficando ao meu lado boa parte do tempo, mas sem falar nada. Os amigos que sabiam da minha condição de solteiro me olhavam interrogativamente e através da linguagem dos olhos tinham suas dúvidas esclarecidas.

Sábado.
Minha mãe reuniu a família e amigos para um almoço, Carla, novamente convidada. Quando a vi, disse de imediato a minha mãe que estava do meu lado:
- Se a senhora gosta tanto dela, porque não casa a senhora com ela?
Levantei-me e fui de encontro a Carla que beijou-me na boca. Segurei a mão de Carla e a levei para meu quarto. Tranquei a porta.
- Carla, nós terminamos. – disse. No mesmo tom em que diria a um paciente que ele está na fase terminal de um câncer. Com suavidade e certa melancolia.
- Mas nós já terminamos e voltamos algumas vezes – tentou argumentar ela.
- E você quer viver um relacionamento vai e vem? Este tipo de relacionamento é como um iô-iô mal manejado, a cada volta tem menos cordão a percorrer e honestamente, da forma como vejo, na nossa relação não tem mais corda pro iô-iô andar. Já parou de girar.
- Você não sente mais nada por mim? – Carla perguntou já em tom choroso.
- Sinto muito carinho, sinto o amor que nunca se perde por quem queremos bem, mas não vejo futuro para nós dois como casal.
- Por que não?
- Porque você já reclamava muito das minhas atividades profissionais como plantões e também do tempo que eu passava com amigos ou pegando onda. E agora vai ter muito menos tempo e sinceramente não quero mais passar meu tempo de sexo e carinho ouvindo incessantes reclamações.
- Mas eu posso mudar.
- Já ouvi isso antes e advinha, você não mudou. Você não vai mudar. Você sabe disso, eu também, vamos recomeçar uma relação baseado nesta mentira?
Ela chorou, mas por pouco tempo. Ela já esperava este desfecho afinal eu sou completamente previsível para quem me conhece, tenho um código de ética do qual não desvio e baseado neste código sequer perco tempo com fingimentos, logo, quem me conhece sabe o que esperar de mim, que eu seja eu mesmo.

Domingo.
Minha mãe queria sair para almoçar comigo, achei muito estranho, afinal o favorito dela era meu irmão, aquele que a obedecia sempre e fazia todas as suas vontades. Lembrei o quanto ela me azucrinou para não fazer medicina e sim administração. Disse a ela que iria surfar. Peguei minha prancha e fui para uma praia que não frequentava porque não queria encontrar ninguém, conversar ou ser social. Queria o silêncio, a introspecção, saber o que esperar de mim diante do desafio que estava a minha frente. Não era mais um estudante de medicina, era um médico. O que acompanharia esta mudança? Dúvidas e mais dúvidas.
Cheguei à praia, finquei a prancha na areia e lá fiquei, horas, olhando as ondas e pensando em nada.
Senti alguém próximo, Janos, um dos meus colegas formandos, que também surfava. Janos fincou a prancha dele próximo a minha e sentou-se ao meu lado.
- Descansando? – perguntou-me Janos
- Não entrei ainda.
- Chegou agora?
- Tem um tempo.
- Estranhei te ver aqui. Sei que você não gosta deste ponto pra surfar.
Tive vontade de responder que estava ali por achar que ficaria sozinho, mas a educação não me permitiu. O que me impede de ser totalmente transparente é a maldita educação. Não consigo lembrar-me de quantas vezes desejei mandar a educação pros quintos dos infernos e não fiz. Fiquei calado, como naquele momento.
- Você também se sentiu deprimido? – perguntou-me.
- Vim aqui para isso, para mergulhar na depressão, deixá-la consumir-me por inteiro, por horas. E mandá-la embora. Quando voltar para casa quero estar limpo, de depressão ou euforia para tomar as decisões que preciso sem nenhuma influência emocional.
- Posso ficar aqui e mergulhar na depressão também?
Achei a pergunta estranha. A praia é pública porque ele precisaria de minha permissão?
- Fique a vontade.
Por mais uma hora continuei ali, sentado e mergulhado na depressão. Enfim voltei à tona, respirei o ar, livre de emoções. Levantei-me, apertei a mão de Janos sem falar uma palavra. Peguei a minha prancha, caminhei até o carro, amarrei a prancha no rack e ao ligar o carro percebi que tinha que abraçar todas as responsabilidades que viriam adiante e pronto, já tinha tomado a minha primeira decisão como médico, iria morar sozinho. 
Pensei em minha mãe sabendo que ela iria querer saber a razão desta minha decisão. A resposta já estava pronta:
Existem caminhos a serem trilhados na solidão.

2 comentários:

  1. Que lindo Titus e angustiante momento, em que temos que enfrentar o mundo, com erros e acertos,mas com coragem. Acho que quem leva a vida a sério fica mesmo inseguro diante de um momento tão importante.Você venceu! Bjos.

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  2. Titus sei como é isso ter um momento pra pensar e refletir sobre responsabilidades que tomamos na vida sobre nossas escolhas, por tudo isso graças a Deus por vc ser o medico que é sei que passou por muitas coisas na sua vida mas eu creio assim, quando nascemos nosso caminho ja esta traçado e ninguém vai passar o que foi destinado para nos, pelo pouco que sei de vc amigo ja passou por muitas alegrias e frustrações,mas hoje sei que é um vencedor e me orgulho de ser sua amiga amo vc beijos.

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