Sexta-Feira, dezembro, meados dos anos 80.
Ao entrar no centro de
convenções senti o corpo gelar, uma sensação desagradável tomou conta de mim de
forma surpreendente. Estava ali para receber o diploma de médico. Foi um evento social com certo impacto. Pela
primeira vez, desde a implantação da ditadura militar, que uma turma de
medicina se formaria em uma única solenidade. Estávamos naquele momento
representando para a sociedade algo considerado perigoso pelos militares, uma
classe com sentimento de classe. Meu Deus! Quanta hipocrisia. A sociedade não
foi informada que neste grupo de formandos, muitos arrancaram dos quadros no
hospital e faculdade de medicina os avisos de estágios e cursos de fora da faculdade
para evitar concorrência. Que havia aqueles que entraram exclusivamente pela
política e que jamais veriam um paciente na vida de, entre aspas, médicos.
Também aqueles, exceções, a bem da verdade, cujos comportamentos aéticos
deveriam ter provocado suas expulsões da faculdade.
Sentia-me mal por
participar daquela hipocrisia, a turma formada unida, nada tinham de união a
não ser a própria formatura. As diferenças chegaram ao ponto de termos dois
oradores, impostos por dois grupos conflitantes.
O último conflito, a
própria roupa que usávamos. Uma turma não abria mão da Beca, outra não abria
mão do terno. Depois de uma manhã inteira de discussão, a maioria da turma
decidiu que seria terno cinza com uso obrigatório do colete. Avisei
antecipadamente que não usaria colete, afinal Salvador era uma cidade de clima
acalorado e eu não iria me sentir desconfortável por causa de roupa alguma.
Quando cheguei ao salão principal do centro de convenções reservado para nossa
formatura, percebi que alguns colegas que não se manifestaram na reunião final
também não estavam usando coletes. Esta era a turma dos independentes.
Meu pai, que estaria muito
orgulhoso neste dia, havia morrido três anos antes vítima de um AVC. Minha mãe
fez questão de estar acompanhada da minha tri-ex-namorada, forçando uma
reaproximação que eu não desejava. Meu olhar de reprovação disse tudo por mim
ao ponto de fazer minha mãe cochichar-me no ouvido: “Comporte-se com ela”.
Sorri ao receber meu
diploma, meu sorriso social, aparentemente feliz, totalmente falso. Era muita
hipocrisia para uma noite apenas. Com o diploma na mão pensava apenas que tudo
daquele dia em diante seria minha responsabilidade, eu teria um preceptor na
residência, treinando-me, pelo menos esta era a percepção de uma residência,
mas no fundo eu sabia que os erros seriam os meus erros, de mais ninguém. Como
eu lidaria com os erros? Se e quando acontecesse eu teria a habilidade de
repará-los em tempo? Estaria realmente preparado para ter a responsabilidade de
uma vida sob as minhas mãos?
A noite foi rápida, ao que
me lembro. A festa no Clube Baiano de Tênis foi restrita a poucos convidados
por aluno, afinal eram muitos os formandos. Mas como meu grupo de colegas com quem
saia para farras era razoável, tive muita gente para dar atenção e evitar uma
conversa que seria desagradável com Carla. Felizmente, para ela, Carla se
comportou como a namorada silenciosa, ficando ao meu lado boa parte do tempo,
mas sem falar nada. Os amigos que sabiam da minha condição de solteiro me
olhavam interrogativamente e através da linguagem dos olhos tinham suas dúvidas
esclarecidas.
Sábado.
Minha mãe reuniu a família
e amigos para um almoço, Carla, novamente convidada. Quando a vi, disse de
imediato a minha mãe que estava do meu lado:
- Se a senhora gosta tanto
dela, porque não casa a senhora com ela?
Levantei-me e fui de encontro
a Carla que beijou-me na boca. Segurei a mão de Carla e a levei para meu
quarto. Tranquei a porta.
- Carla, nós terminamos. –
disse. No mesmo tom em que diria a um paciente que ele está na fase terminal de
um câncer. Com suavidade e certa melancolia.
- Mas nós já terminamos e
voltamos algumas vezes – tentou argumentar ela.
- E você quer viver um
relacionamento vai e vem? Este tipo de relacionamento é como um iô-iô mal
manejado, a cada volta tem menos cordão a percorrer e honestamente, da forma
como vejo, na nossa relação não tem mais corda pro iô-iô andar. Já parou de
girar.
- Você não sente mais nada
por mim? – Carla perguntou já em tom choroso.
- Sinto muito carinho,
sinto o amor que nunca se perde por quem queremos bem, mas não vejo futuro para
nós dois como casal.
- Por que não?
- Porque você já reclamava
muito das minhas atividades profissionais como plantões e também do tempo que
eu passava com amigos ou pegando onda. E agora vai ter muito menos tempo e
sinceramente não quero mais passar meu tempo de sexo e carinho ouvindo
incessantes reclamações.
- Mas eu posso mudar.
- Já ouvi isso antes e
advinha, você não mudou. Você não vai mudar. Você sabe disso, eu também, vamos
recomeçar uma relação baseado nesta mentira?
Ela chorou, mas por pouco
tempo. Ela já esperava este desfecho afinal eu sou completamente previsível
para quem me conhece, tenho um código de ética do qual não desvio e baseado
neste código sequer perco tempo com fingimentos, logo, quem me conhece sabe o
que esperar de mim, que eu seja eu mesmo.
Domingo.
Minha mãe queria sair para
almoçar comigo, achei muito estranho, afinal o favorito dela era meu irmão,
aquele que a obedecia sempre e fazia todas as suas vontades. Lembrei o quanto
ela me azucrinou para não fazer medicina e sim administração. Disse a ela que
iria surfar. Peguei minha prancha e fui para uma praia que não frequentava
porque não queria encontrar ninguém, conversar ou ser social. Queria o
silêncio, a introspecção, saber o que esperar de mim diante do desafio que
estava a minha frente. Não era mais um estudante de medicina, era um médico. O
que acompanharia esta mudança? Dúvidas e mais dúvidas.
Cheguei à praia, finquei a
prancha na areia e lá fiquei, horas, olhando as ondas e pensando em nada.
Senti alguém próximo,
Janos, um dos meus colegas formandos, que também surfava. Janos fincou a
prancha dele próximo a minha e sentou-se ao meu lado.
- Descansando? –
perguntou-me Janos
- Não entrei ainda.
- Chegou agora?
- Tem um tempo.
- Estranhei te ver aqui. Sei
que você não gosta deste ponto pra surfar.
Tive vontade de responder que estava ali por achar que ficaria sozinho, mas a educação não me permitiu. O
que me impede de ser totalmente transparente é a maldita educação. Não consigo
lembrar-me de quantas vezes desejei mandar a educação pros quintos dos infernos
e não fiz. Fiquei calado, como naquele momento.
- Você também se sentiu
deprimido? – perguntou-me.
- Vim aqui para isso, para
mergulhar na depressão, deixá-la consumir-me por inteiro, por horas. E mandá-la
embora. Quando voltar para casa quero estar limpo, de depressão ou euforia para
tomar as decisões que preciso sem nenhuma influência emocional.
- Posso ficar aqui e mergulhar
na depressão também?
Achei a pergunta estranha.
A praia é pública porque ele precisaria de minha permissão?
- Fique a vontade.
Por mais uma hora
continuei ali, sentado e mergulhado na depressão. Enfim voltei à tona, respirei
o ar, livre de emoções. Levantei-me, apertei a mão de Janos sem falar uma
palavra. Peguei a minha prancha, caminhei até o carro, amarrei a prancha no
rack e ao ligar o carro percebi que tinha que abraçar todas as
responsabilidades que viriam adiante e pronto, já tinha tomado a minha primeira
decisão como médico, iria morar sozinho.
Pensei em minha mãe
sabendo que ela iria querer saber a razão desta minha decisão. A resposta já
estava pronta:
Existem caminhos a serem
trilhados na solidão.